A Fagulha
Terminada a sessão e enquanto a minha tia –a professora- concluia os seus trabalhos, sentava-me (numa daquelas carteiras de madeira com o plano inclinado e tinteiro), desfolhava a “Fagulha” (revista da Mocidade Portuguesa) e seguia, sábado após sábado, de forma atenta o concurso nacional de desenho que esta revista tinha promovido e cujo tema “Portugal uno e indivisível” soava aos meus ouvidos como algo distante e indefinível.
Concluído o referido concurso o meu olhar perdia-se naquele primeiro prémio: um galo de Barcelos localizado em Portugal Continental, interligado a umas estatuetas africanas localizadas nas respectivas colónias... e o autor?
Um qualquer angolano, lá do cabo do mundo a ganhar um concurso com aquele desenho tão estranho!!!...
Perturbador sem dúvida! Várias vezes o meu pensamento vagueou ansioso por entre aqueles traços, de tal modo que os “guardei enigmaticamente” numa das gavetas da minha memória.
Anos passados, casada, e num primaveril sábado à tarde numa garagem da Rua do Mercado, Algueirão, entre conchas, pássaros embalsamados, ovos de avestruz e casuar, borboletas, bichos, carochas, lá estávamos nós a vasculhar no meio de livros, cartas, papeis, jornais e... desenhos. Subitamente o meu olhar fixa-se em algo que conhece bem, escancara-se a gaveta da memória e vem a esta (não uma frase batida...) mas o espanto provocado por aquele desenho. Espanto esse que agora, noutra realidade ainda permanecia, ou mesmo se agudizava perante a coincidência do autor ser agora o meu marido!!!
Coincidência decerto, mas envolvida numa ternura e num elo tão forte que a Fagulha despertou e incendiou e que ainda hoje se mantém tão aceso como há 29 anos atrás, quando nos casámos.
... E foi assim que eu com nove anos e vivendo em Sintra que conheci o meu marido David, com doze anos e vivendo no Dundo em Angola.